Acabar com as Autoescolas é, afinal, um progresso ou um retrocesso?

28/10/2019 às 1:48 pm

Qual seu primeiro pensamento ao ler o título deste texto? Com certeza, a depender do grau de envolvimento do leitor com a formação de condutores, o alcance desta curta frase será diferente. Para os donos de Autoescolas, a perspectiva inicial é, no mais das vezes, de preocupação com o seu futuro comercial; para os instrutores de trânsito, como tenho visto nas redes sociais, há uma ambiguidade de sentimentos: ou de incerteza quanto à sua atividade profissional ou de projeção de uma atuação autônoma; para os candidatos à habilitação (e até para alguns motoristas que já passaram pelo processo), percebe-se certa euforia, pela potencial diminuição de custos para obtenção da CNH, aliada a um sentimento de menosprezo ao importante papel desempenhado (ou que deveria ser) pelos Centros de Formação de Condutores.

Se avaliarmos a legislação de trânsito brasileira, veremos que, na vigência dos 2 primeiros Códigos de Trânsito no Brasil não se fazia menção à necessidade de aprendizagem por meio de instituições especificamente criadas para tal, bastando que o interessado realizasse o “exame médico” para obter a sua “licença para aprendizagem”, a partir do que poderia realizar a aprendizagem (ou praticagem) com qualquer motorista (havia, inclusive, infração de trânsito atribuída ao condutor que ministrasse aulas a indivíduos que não possuíssem citada licença).

Foi somente com o 3º Código, que a lei passou a prever as “escolas de aprendizagem”, cujas normas e exigências para instalação e funcionamento deveriam ser editadas pelo Conselho Nacional de Trânsito).

Embora chamadas legalmente de escolas de aprendizagem, popularizou-se o termo Autoescola, ainda que não fosse utilizado na Lei. Com o 4º (e atual) Código de Trânsito Brasileiro, instituído pela Lei n. 9.503/97, o termo AUTOESCOLA foi taxativamente utilizado nos artigos 154 e 156, para designar, respectivamente, tanto a inscrição a ser aposta no veículo de aprendizagem, quanto a instituição responsável pela formação de condutores.

Há que se apontar, ademais, que o CTB deixa subentendido que há perfeita possibilidade de formação de condutores SEM Autoescola, ao prescrever, no artigo 155, que “A formação de condutor de veículo automotor e elétrico será realizada por instrutor autorizado pelo órgão executivo de trânsito dos Estados ou do Distrito Federal, pertencente ou não à entidade credenciada”, o que significa que o indispensável é o INSTRUTOR e não a ENTIDADE de formação, o que foi, entretanto, limitado pelo Contran, ao regulamentar o tema pela Resolução do Contran n. 358/10.

Além das regras de funcionamento das instituições de ensino, o processo de formação de condutores também está em constante modificação: exigência de aulas noturnas; carga horária mínima de aulas; obrigatoriedade (ou não) de simulador de direção veicular são alguns dos temas que têm se alterado na regulamentação do setor: aliás, dentre as 780 atuais Resoluções do Contran, a que mais sofreu mudanças foi, sem dúvida, a de n. 168/04, que trata justamente do tema – sem contar a mal sucedida reformulação completa, no ano passado, que foi recentemente modificada pela Resolução n. 778/19 e está passando por uma reavaliação por parte do Denatran, para ser consolidada, em Resolução única, contemplando as regras de credenciamento e funcionamento das instituições de ensino previstas na 358/10.

Como se vê, ao longo destes 21 anos de vigência do atual Código de Trânsito, muita coisa já tem mudado para quem atua no segmento. Voltando à pergunta introdutória: no cenário atual, qual a perspectiva de que as Autoescolas não existam mais, como porta de entrada obrigatória àquele que deseja receber do Estado a licença para dirigir veículos automotores?

Provavelmente, para quem é profissional da área e acompanha as alterações da legislação de trânsito, não é novidade que, recentemente, foi apresentado Projeto de Lei neste sentido, que, se aprovado, permitirá que o interessado em se habilitar escolha se quer passar por aulas (teóricas e práticas) em um Centro de Formação de Condutores ou se prefere se preparar de forma autônoma, submetendo-se apenas às avaliações pelo órgão executivo estadual de trânsito (Detran), situação em que a aprendizagem de prática de direção veicular poderá ser realizada com qualquer motorista habilitado há pelo menos três anos na categoria que pretende ensinar.

Trata-se do PL n. 3.781/19, que propõe alterações no artigo 141 do CTB. Embora tenha gerado bastante especulação e comentários antagônicos a respeito do acerto (ou desacerto) da proposta, como se a ideia já estivesse prestes a ser implantada, a sua tramitação nos demonstra que ainda há um longo caminho pela frente. Isto porque, como se pode ver nas informações disponibilizadas pela própria Câmara dos Deputados, a proposição foi apensada a outro PL, de n. 2.471/19, que traz uma mudança um tanto quanto conflituosa com a retirada da obrigatoriedade de aulas em CFC, que é a exigência de que os “Cursos de aprendizagem relativos ao processo de habilitação” sejam realizados, unicamente, na modalidade presencial – ora, se houver exigência da presença do candidato, é porque os Cursos continuarão sendo obrigatórios…

Isto significa que o primeiro debate a ser travado entre os parlamentares será para decidir qual a melhor proposta legislativa: desobrigar a realização dos Cursos ou limitá-los à modalidade presencial, ou, ainda, a adoção de uma solução intermediária, que contemple ambas as ideias externadas pelos autores dos citados Projetos: exigir o Curso teórico, de forma presencial e permitir a escolha do candidato quanto às aulas práticas: de forma autônoma ou em uma Autoescola.

Uma constatação simples: atualmente, tanto o desejo quanto a necessidade de se possuir uma Carteira de Habilitação ou de ser proprietário de um veículo automotor, não têm a mesma intensidade, para os indivíduos em geral, que de alguns anos atrás. Como será quando for uma realidade ainda mais latente a presença de veículos autônomos nas vias públicas?

Neste cenário de transformação, qual é o verdadeiro papel das Autoescolas? Alguém que deseja se habilitar busca exatamente o quê ao procurar um CFC? É possível obter o mesmo conjunto de informações e de habilidades sem passar pela entidade de formação? Qual é o interesse do Estado, antes de conceder a licença para conduzir a alguém, além de se certificar de que ele está em condições de dirigir veículos, de maneira segura, na via pública? A qualidade de nossos motoristas melhorou na mesma intensidade das mudanças normativas? O motorista de hoje, após passar por um CENTRO DE FORMAÇÃO DE CONDUTORES sai mais preparado para dirigir com SEGURANÇA ou tanto faz se ele aprendeu com o CFC ou com um amigo ou parente? Além de saber manusear os comandos do veículo, o que mais ele deveria APRENDER? A FORMAÇÃO de condutores começa somente com o CFC ou está intrinsecamente ligada à FORMAÇÃO DO CIDADÃO? O objetivo principal de mudanças no processo deve levar em consideração a desburocratização e diminuição de custos (justificativas que têm sido utilizadas pelo Poder Executivo federal) ou aumento da SEGURANÇA?

Em minha opinião, as respostas a estas perguntas é que devem nortear, por parte do poder público, as eventuais mudanças no processo de formação de condutores e, por parte dos profissionais do setor, a reformulação dos serviços oferecidos.

A Autoescola pode até acabar, da maneira como a conhecemos hoje, mas, como em qualquer outra área do saber, enquanto houver o que se aprender, haverá espaço para atuação daquele que se dispõe a ensinar…

 

Julyver Modesto de Araujo é Mestre em Direito, Consultor e Professor de Legislação de trânsito

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