O Bolo Salvador

03/08/2020 às 9:35 am

Acabo de ler esta semana o livro Vision Zero 20 years – How dreams can become reality (Visão Zero 20 anos – Como sonhos podem se tornar realidade), escrito pela jornalista sueca Hanna Lindberg, editado pela empresa AF Consult. Conta as peripécias históricas da origem do programa Visão Zero na Suécia, que se tornou a mais ousada e inovadora ação de segurança no trânsito no mundo. O livro foi publicado em 2017 para comemorar os 20 anos da Lei. Uma lição de coragem, persistência, resiliência e principalmente de firmeza de propósito.

Tudo começa em 1995 com um acidente como tantos outros: cinco jovens num carro, chuva, aquaplanagem, veículo desliza na pista, sai do controle, choca-se com violência contra uma barreira de concreto na cabeceira da ponte, todos morrem. Embora lamentável e grave, o acidente tinha tudo para passar como “mais um” na estatística nacional. Não foi.

Recém empossado como diretor técnico da Agência Sueca de Segurança Viária (VV, sigla sueca), Claes Tingvall convoca o diretor regional em Estocolmo, local do acidente, para explicar o que significava para ele a morte de cinco jovens numa colisão contra uma barreira de concreto, colocada pelo governo na cabeceira da ponte. “Significa que semana que vem iremos construir uma outra barreira de concreto no mesmo lugar”, respondeu com naturalidade. Questionado porque, explicou que remover a barreira dali equivaleria a assumir a culpa pelo acidente. “Quem cometeu a falha foi o motorista do carro, consequentemente ele foi o responsável”, afirmou. Tingvall não se conformou com a resposta que coincidia com a mentalidade na Suécia e na Europa na época. Na realidade, em grande parte do mundo – Brasil no meio – é assim até hoje que se pensa.

Os acidentes tinham uma causa e ela quase sempre recaía na conduta das vítimas: “velocidade, imprudência, bebida, etc.”, constatou. Chocado, decide não abandonar o tema e começa a formular perguntas intrigantes: O que realmente seria um nível “aceitável” de vidas perdidas no trânsito? É razoável acreditar que uma pessoa nunca comete um erro? Quem é responsável, realmente? Ficava cada vez mais incomodado com as respostas que encontrava. “Se você é médico e trata uma pessoa com câncer, não importa que ela tenha ignorado avisos anteriores de que fumar poderia prejudicar sua saúde. Como profissional, você tem a vida e a saúde dela em suas mãos!”.

Escreveu, então, para si e sua equipe três frases que ficariam para sempre:

A vida é mais importante do que qualquer outra coisa;

Nós somos responsáveis pela segurança;

Nós sabemos o que fazer.

Pouco tempo depois, numa visita à VV, a Ministra Sueca das Comunicações, à qual estava ligada a Agência, perguntou a Claes Tingvall quais objetivos a Suécia deveria ter em termos de segurança no trânsito. “Deveria ser zero mortes“, respondeu o diretor, para surpresa geral. Pensativa, depois de alguns segundos, ela responde com um “boa!”. Era a aprovação que faltava para passar às ações. A alegria, contudo, seria substituída por aborrecimentos que iriam durar muito. Já à noite do mesmo dia, o Diretor Geral da VV foi até à sala de Tingvall com um comentário forte: “O diretor de segurança, que fala em zero mortes no trânsito, não ficará aqui por muito tempo”, antevendo o cataclisma que se avizinhava. De fato, críticas e fortes reações negativas de colegas e do setor foram imediatas.

Apesar das desaprovações, o Parlamento Sueco aprova a Lei da Visão Zero em maio de 1977 e aí foi a vez de outros países criticarem o programa, taxando-o de utopia. Dentro dos vários projetos prioritários para trazer a zero as fatalidades no trânsito sueco, Tingvall escolhe converter um trecho da estrada E4, que começa na Finlândia, cruza a Suécia e termina na Dinamarca, numa estrada 2+1. Conceito desconhecido no país, a estrada 2+1 é uma rodovia de 3 pistas com uma barreira de separação ao meio a cada 1,5 km, impedindo com isto a ultrapassagem de veículos exceto quando a pista for dupla e, assim, evitando colisões frontais. As colisões frontais tinham sido responsáveis por 21 mortes nos ultimos 8 anos e se constituiam numa das principais causas de fatalidades nas rodovias suecas. Divulgado o plano, as críticas explodiram. A maior ONG do país, a NTF de Estocolmo, classificou como “horrenda” a solução. Quando consultada numa pesquisa de opinião pública, a sociedade sueca deu um insignificante 0,3% de aprovação. Jornalistas presentes à inauguração do trecho perguntavam o que aconteceria quando o banho de sangue acontecesse.

Aí acontece o fato inusitado e que virou o jogo a favor de Tingvall e seu time: alguém enviou um bolo para ele, no seu escritório, acompanhado de um bilhete com cinco palavras: “Eu estaria morta sem você.” A autora era uma senhora que dirigia seu carro no trecho de estrada 2+1, se distrai por causa de seu cachorrinho no banco de trás, perde o controle, colide com a barreira no meio da pista e assim evita a colisão frontal com veículos que vinham no sentido contrário. Foi o suficiente para que os ventos passassem a soprar a favor. Governo, indústria, setor, colegas, imprensa mudaram de lado. Até a NTF que havia chamado a solução de horrenda, “criticou” a Agência por não expandir as estradas 2+1 com maior rapidez(!).

De lá para cá, graças à Visão Zero a Suécia baixou em bem mais de 50% o numero de fatalidades no seu trânsito em geral. Só com a instalação das barreiras intermediárias nas estradas 2+1 o número de mortos baixou em 80%. O custo foi aproximadamente 10% do que custaria para duplicar a pista.

Atualmente o conceito da Visão Zero é utilizado em praticamente toda a Europa, América do Norte e Oceania. Dezenas e dezenas de cidades pelo mundo afora adotaram o programa e pela maneira firme como se propaga, tudo indica que este número se expandirá.

Quando este conceito chegará para valer ao Brasil? Num dos próximos artigos comentarei sobre isto. Por hora, ficarei muito satisfeito em ler seus comentários sobre este tema, uma forma de preparar o país para o futuro que já chegou mas que, pelo jeito, muitos ainda não se deram conta.

J. Pedro Correa – Consultor em programas de trânsito

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