PONTO & CONTRAPONTO

07/06/2022 às 9:40 am

Saindo da estrada

No momento em que escrevo este artigo, as notícias na imprensa nacional ainda exploravam a convocação do Ministro da Justiça e do Diretor Geral da Polícia Rodoviária federal para explicar no Congresso Nacional o envolvimento da PRF em operações de apoio à outras forças policiais que resultaram na morte de dezenas de pessoas. Muito triste! Neste momento em que os nervos estão exaltados pela proximidade da campanha eleitoral no país, é natural que este fato seja aproveitado pela oposição para explorar mais um tropeço do governo enquanto a situação busca relativizá-lo para, se possível, abafá-lo.

Não vou entrar no julgamento político dos fatos, mas julgo imprescindível abordar o assunto por uma razão tão simples quanto fundamental: não podemos perder a nossa PRF num momento tão importante para o trânsito brasileiro. Ela é peça fundamental para ajudar o país a melhorar seus indicadores de trânsito e a enfrentar os grandes desafios à frente.

Já estamos quase na metade do segundo ano da segunda década mundial de trânsito e o trabalho da PRF é essencial no patrulhamento das rodovias federais; O Pnatrans, nossa grande esperança de ter um consistente plano de redução de mortos e feridos, promete decolar; o Ministério da Saúde fala de um ambicioso plano de ação para combater, pelo seu lado, os sinistros de trânsito; Estados e municípios discutem como viabilizar os planos de ação elaborados pelo Pnatrans. A agenda é grande, ambiciosa e sabemos que nos faltam recursos de toda ordem para aguentar firme até 2030. Assim, o País não pode se dar ao luxo de perder, mesmo que em parte, um suporte fundamental como o da PRF.

Ao longo dos últimos anos temos visto, com certa frequência, a participação da PRF em ações policiais que ultrapassam os limites do trânsito rodoviário que é a razão de ser de sua existência. Passamos a ver apoio direto a operações de outras forças policiais no combate ao crime comum. É claro que houve um ato do Ministro da Justiça autorizando a extensão de campo de ação da PRF mas é precisamente isto que está sendo questionado. Por mais que se diga o contrário, é claro que, numa ponta, esta “extensão do campo de ação” diminui a capacidade da PRF no monitoramento das rodovias e o principal: na outra ponta, não resolve o problema do combate ao crime organizado.

Todos sabemos que não é enfraquecendo a fiscalização rodoviária que vamos resolver a violência cotidiana do crime no Brasil. Não entro, sequer, no mérito da ideologização política da ação, assunto complexo que não quero abordar por aqui. Me restrinjo unicamente ao fato de que a PRF – inteira – é indispensável no combate aos delitos de trânsito rodoviário e não podemos perder nem um pedaço nela.

O que mais doeu nestas últimas semanas foi ver não apenas um resultado amargo para a PRF mas principalmente a deterioração do seu nome, da sua imagem. As últimas operações desastrosas mancharam forte a imagem da corporação. Quem trabalha com comunicação sabe muito bem que, para fortalecer a imagem de uma instituição, é preciso um forte trabalho durante muitos anos mas para perder a reputação basta uma simples fraquejada. E esta não foi “simples”.

O Ministério Público Federal está intercedendo para que a PRF seja proibida de atuar fora de sua área natural de operações, o policiamento rodoviário. Sabemos, contudo, que esta será uma batalha difícil de vencer pois as condições que levaram a PRF a sair da sua estrada natural têm outras implicações. Será preciso que a classe política, diante da gravidade do problema, se una para colocar um basta neste desvio de caminho da PRF. Parece difícil imaginar uma ação política deste porte há poucos meses das eleições.

Pelo que se divulgou durante a semana, já no último curso de formação de mais de 1.000 agentes da PRF, não havia mais as disciplinas de educação para o trânsito, direitos humanos nem ética, o que pode indicar de maneira clara uma nova direção. Por isto é essencial exigir com todas as forças o retorno da PRF ao seu caminho tradicional.

O trânsito brasileiro já tem problemas demais para se envolver em mais um desta proporção. O Brasil tem praticamente tudo o que precisa para chegar a 2030 com condições de atingir as metas da ONU/OMS de reduzir em 50% o número de fatalidades no trânsito. Temos gente qualificada para tocar um programa bem sucedido de ações; Se tivermos um bom plano e uma boa equipe, os recursos aparecerão. Falta-nos, como sempre soubemos, vontade política para agir. Agora, pelo jeito, teremos mais um desafio: enfrentar quem também está jogando contra. Jogo bruto e cruel.

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Nunca saímos das estradas

Diante da abordagem feita em um dos artigos do decano da segurança no trânsito, o jornalista J. Pedro, sinto-me instado a esclarecer alguns aspectos sobre a atuação da PRF que nasceu guarda patrimonial, integrante da estrutura do Ministério dos Transportes, caracterizada como um serviço dentro do antigo DNER, hoje DNIT.

Em um movimento da própria sociedade, aproveitando a mudança da ordem constitucional, a instituição foi refundada e passou a integrar a estrutura do Ministério da Justiça, tornando-se em 1991 um departamento da Administração Pública Direta. Ao integrar o capítulo da Segurança Pública na Carta Magna ficou nítido que haveria certa distorção no exercício das atribuições do órgão. Afinal, segurança viária ainda não possuía uma conceituação clara, que a relacionasse diretamente com as intervenções próprias da Segurança Pública. A EC n° 82/2014 teria trazido estabilidade ao tema, na medida em que inseriu a Segurança Viária como elemento a integrar o conceito de Segurança Pública.

Frise-se que o fortalecimento formal da Segurança Viária veio, em um primeiro momento, com a Lei nº. 9.503/1997. Antes havia o CNT e construções doutrinárias incipientes, que eram objeto de constantes questionamentos. Mesmo com o novo marco legal (CTB) subsistiam discussões sobre, por exemplo, a extensão dos conceitos de “policiamento” e “patrulhamento”, este último constante do art. 144 da CF/88, que tentavam colocar em xeque a atuação da PRF no combate ao crime. Dessa maneira, verificou-se que não era aproveitada adequadamente a estrutura de um órgão policial de natureza preventiva, altamente capilarizado e desdobrado no principal modal do país, o rodoviário, trazendo prejuízo à efetividade do combate ao crime.

Para dotar a PRF de melhores condições para colaborar no combate ao crime, o Poder Executivo Federal publicou o Decreto nº 1.655/1995 que, dentre muitas inovações, trouxe como atribuição o contido no art. 1º, X do referido decreto, o qual prevê que a PRF deve: “Colaborar e atuar na prevenção e repressão aos crimes contra a vida, os costumes, o patrimônio, a ecologia, o meio ambiente, os furtos e roubos de veículos e bens, o tráfico de entorpecentes e drogas afins, o contrabando, o descaminho e os demais crimes previstos em leis.” O referido dispositivo foi objeto da ADI n° 4447/2010, tensionando novamente o tema. Diante dessa mudança normativa de viés estruturante, que mais tarde veio a ser complementada por outras normas, tendo sido determinante o fato de ser o Brasil um país rodoviário, com imensa faixa de fronteira, onde atuam organizações criminosas transnacionais, a PRF passou a integrar os sistemas de cooperação interagências, como meio de qualificar o enfrentamento ao crime. Ou seja, tanto pela previsão legal, quanto pela necessidade de se adequar à nova realidade, marcada pela ousadia e pelos grandes investimentos do crime organizado para transportar drogas e armas, usando as rodovias federais, a PRF precisou se reorganizar. Especificamente na segurança viária. Durante a 1ª Década de Segurança Viária da ONU (2011/2020) a PRF atuou de forma consistente, mesmo não havendo à época um engajamento maior do tema no Brasil. A Operação RODOVIDA, que hoje é um programa de governo, começou como uma operação estruturada pela PRF ainda em 2009.

Enquanto autoridades espanholas discutiam, no início dos anos 1990, medidas para reduzir as mortes no trânsito. Em 2005 – apenas dois anos após a primeira publicação da ONU sobre segurança no trânsito (A/RES/58/9) – os espanhóis publicavam um consistente Plano de Segurança Viária (2005-2008), o Brasil, por sua vez, só veio a editar uma primeira lei específica para tratar o tema em 2018 (PNATRANS), já no final da 1ª década.

Considerados os dados das rodovias federais, mesmo diante da baixa audiência dos decisores à época para o tema, houve redução relevante entre 2011 e 2019, que alcançou, nas rodovias federais, cerca de 40% menos mortes, cujo ganho social, se considerado o parâmetro do IPEA, alcança cifras da ordem dos 50 bilhões de reais em dez anos (Fonte: Atlas da Década de Ações da Polícia Rodoviária Federal, 2021). A ideia não é defender como suficientes os atuais resultados, pois os números de mortes sinalizam alta e denunciam os riscos de uma possível retomada do crescimento. Ainda que seja uma tendência mundial em razão da recuperação pós-pandemia, no Brasil o tema segurança viária precisa de mais atenção. Urge a necessidade de uma cultura de segurança viária.

A PRF, enquanto órgão integrante da estrutura da Segurança Pública precisou se adequar, investir em tecnologia, preparar seus agentes e se dedicar a outras atividades que não somente a segurança viária. A estrutura cresceu e o organograma do órgão contempla atualmente uma Diretoria de Operações, que coordena três áreas especializadas e distintas, mas não excludentes. A Coordenação-Geral do Comando Conjunto de Operações Especiais, a Coordenação-Geral de Gestão Operacional e a Coordenação-Geral de Segurança Viária.

Quanto ao emprego de agentes da PRF noutras missões como causa de comprometimento dos esforços para a segurança Viária, ouso discordar, pois não está claro que a mobilização de agentes da PRF para outras atribuições tenha comprometido as capacidades de atuação na segurança do trânsito.

As ações de combate ao crime são realizadas de forma especializada e não se concentram apenas no enfrentamento direto de organizações criminosas, mas no apoio ao Ministério Público do Trabalho, no combate ao trabalho escravo (também fora da rodovia) e aos Auditores Fiscais do Trabalho (às vezes dentro de empresas), dentre outros. E essas atuações, mesmo ocorrendo fora da faixa de domínio das rodovias federais, são estratégicas para o Brasil e são legitimadas pela nova visão de atuação da Segurança Pública em rede de cooperação. Não obstante a isso, a Segurança Viária mobiliza na PRF mais de 50% dos esforços globais do órgão, ou seja, o compromisso com a segurança e a fluidez nos principais corredores viários do país continua sendo a atividade mais importante para a PRF.

Quanto aos lamentáveis episódios ocorridos, a despeito de serem dramáticos e merecerem uma apuração enérgica e isenta, respeitados os Princípios da Ampla Defesa e Contraditório e da Presunção de Não Culpa, trata-se de exceção a uma regra marcada pelo enfrentamento qualificado ao crime organizado e uma fiscalização de trânsito que tornou a PRF referência no tema.

A atuação dos órgãos de controle também merece destaque. Ao atuar de forma permanente, na análise dos processos, contribuíram para o fortalecimento da PRF ao longo dos anos, no sentido de melhorar seus sistemas de análise de risco, de controle interno e de governança.

Respondendo ao oportuno apelo registrado no artigo do especialista J. Pedro, entendo que a PRF está totalmente comprometida com a Segurança Viária. O planejamento das ações, com destaque para o fortalecimento das campanhas de conscientização e a disponibilização de plataformas multiagências, contempla uma estrutura complexa, que tem como prioridade o aprimoramento constante da fiscalização de trânsito, o desenvolvimento de uma perícia que melhore o diagnóstico dos acidentes, o desenvolvimento de um canal único e direto de atendimento ao cidadão (Programa Transformação Digital) e a maior aplicação da inteligência policial nas fiscalizações, dentre outros.

Ouso afirmar que os elementos carreados nesta peça sinalizam que os desafios nesta década, já iniciada, estão alojados no plano estratégico. O tema precisa ser securitizado*, ganhar audiência dos líderes do processo, dos formadores de opinião, para ter mais espaço em debates diretos com a sociedade, e dessa forma ser desmistificado.

A Segurança precisa deixar de ser um tema da polícia e dos especialistas e frequentar a universidade e mesas de debates abertos. Não podemos ficar trocando impressões apenas entre nós, sob pena de continuarmos, tão somente, pregando para convertidos e contando corpos. E temos vários exemplos virtuosos que nos mostram o caminho.

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*Segundo a Escola de Copenhague, qualquer assunto público pode ser alocado no espectro de não politizado, politizado ou securitizado, podendo variar entre eles. Não politizado quando o Estado não é envolvido na questão e não é, em nenhuma forma, uma questão de debate ou decisão pública. Politizado significa que o assunto faz parte da política pública do Estado e requer decisões governamentais, alocação de recursos ou qualquer outra forma de governança. E por securitizada entende-se que a questão é apresentada como uma ameaça existencial, exigindo uma medida de emergência e justificativa para ações fora dos limites normais dos procedimentos políticos. (BUZAN, Barry; WAEVER, Ole; WILDE, Jaap de. Security: a new framework for analysis. Boulder: Lynne Reinner, 1998.)

 

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