Ano novo na estrada

30/12/2020 às 9:26 am

Desde o início dos anos 1980, quando passei a conhecer melhor o assunto, tenho admiração e respeito pelos motoristas de caminhão. Havia começado a trabalhar na Volvo e, de repente, me vi num mundo totalmente diferente daquele que estava acostumado que eram os meios de comunicação social. Ao mesmo tempo que complexo, era um mercado fascinante, marcado por pessoas simples, cheias de disposição para a luta e lotadas de dúvidas. A proposta da Volvo, na época, era mudar o perfil do mercado, modernizar a frota e colocar o transporte do país num patamar bem melhor. Um sonho e tanto, “quase uma utopia” diziam. Depois de algum tempo, a mensagem chegou ao destino mas demorou a provocar as mudanças. Analisando apenas o segmento dos carreteiros, me chamava a atenção as dificuldades que enfrentavam para se manter no mercado: caminhões velhos, manutenção a desejar, baixa produção e, claro, baixa produtividade. Consequência: ganhos muito aquém dos necessários para pagar as contas e reinvestir. A cada fim-de-ano me vinha à cabeça o mesmo tipo de perguntas: quantos deles passarão a virada do ano nas estradas, longe de suas famílias? Quantos terão melhorado de vida naquele ano, conseguido pagar as prestações do caminhão e sobrado um pouco? Apesar destas interrogações, entre outras, ainda era uma categoria de profissionais que gostava do que fazia e até tinha orgulho dela. Na medida em que fui me interessando pela segurança no trânsito, meu foco de atenção ganhava uma nova pergunta, ainda mais importante: quantos deles terão passado aquele ano sem acidentes? As estatísticas eram pobres. Segurança, afinal, nunca tinha sido motivo de preocupação deles, muitos não tinham sequer cinto de segurança no veículo. De verdade, se arriscavam o ano inteiro em estradas e veículos sem as condições básicas de segurança, ignorando os riscos do trabalho. Pura raça!

Quarenta anos depois, o cenário do transporte brasileiro é outro, o mercado está bem mais evoluído, empresas melhor estruturadas, profissionais do volante mais atentos, mas os problemas básicos dos caminhoneiros continuam sem apontar um caminho que os leve (próximos) ao paraíso. Pior que ainda não ter encontrado soluções é não ver perspectivas de saída honrosa. Por isso não surpreende que o antigo encanto do motorista de caminhão com a profissão tenha dado lugar ao desencanto e de não querer mais que filhos tenham o mesmo destino do pai. A categoria é desassistida, pouco instruída, não possui liderança firme e parece não ter preocupação de classe. Impressiona observar que ainda há líderes sindicais na categoria que continuam nos postos há 20, 30 anos. Sem renovação, é natural que a turma também fique sem esperanças e isto dói.

Estive envolvido em estudos sobre a valorização da categoria. Depois de debruçar sobre o tema e perceber o número de variáveis para encontrar saídas é que você se dá conta da complexidade do problema e do enorme esforço que haverá de ser feito para fazer mover esta roda. Será preciso muita determinação, negociação, criatividade, resiliência, desprendimento, abrir mão de conquistas menores para obter maiores, depois, enfim, ainda continuo à espera do despertar de um novo momento no transporte brasileiro. Desde os anos 80 já se dizia que os carreteiros são uma categoria em extinção. Contudo, eles resistem!

O que está claro para mim é que uma solução global do problema passará por muitas cabeças, vários setores e por mudanças drásticas no processo de educação básica do nosso povo, sem a qual continuaremos patinando por muito tempo ainda. Isto significa que uma nova liderança, esperta, antenada, pode surgir, mas para progredir, dependerá de várias outras, em outras áreas. No exterior há alguns modelos cujas pegadas podem ser seguidas aqui para tornar nosso sistema mais promissor. Mas para isto é preciso que haja vontade política por parte de quem está nas áreas de confluência. Além de progressos na área da formação, da melhor capacitação profissional, haverá de ter avanços na relação capital-trabalho, legislação, reconhecimento, meritocracia, tecnologia, etc., etc. Lideranças do transporte têm papel essencial neste processo. A lista é longa e será preciso fôlego para ir até o fim.

Enquanto o desfecho não surge, a chegada de mais um ano novo me traz, agora, de volta a mesma e antiga pergunta lá de trás: quantos desses motoristas estarão nas estradas, longe das famílias, solitários dentro de seus caminhões. Nos últimos anos temos visto a entrada de mulheres caminhoneiras. E continua a mesma pergunta: como será para elas estar longe dos seus neste período tão importante principalmente para nós, brasileiros?

Achei que deveria dedicar esta crônica à categoria, tão pouco reconhecida e tão indispensável ao nosso cotidiano. Sabemos que mais de 60% de tudo o que é transportado neste país, vem em cima de caminhões. Não há nada na sua casa ou no seu escritório que não tenha vindo na garupa de um caminhão. Em tempos de Coronavírus a tarefa desta gente tornou-se ainda mais importante porque quando precisávamos permanecer em casa, em isolamento, eles tinham de estar nas estradas. Lembro que no começo da pandemia foi necessária até uma mobilização nas estradas para oferecer comida a eles porque os restaurantes tinham fechado.

Espero que os novos tempos tenham trazido outras reflexões aos motoristas profissionais e que, entre elas, a importância da segurança nas estradas. Nos últimos 10 anos, pelos dados do Datasus, passou de oito mil o número de mortos nas estradas em acidentes envolvendo caminhões. É um número insustentável e tem de acabar. Sinto que muitos brasileiros veem os caminhoneiros como verdadeiros (e românticos) heróis e realmente o são. Mas é preciso lembrá-los sempre de que herói bom é o herói vivo, aquele que batalha por suas causas, mas que não coloca em risco sua vida por desinformação. É deste cidadão que sua família precisa e que o país não abre mão para poder prosseguir no seu processo de desenvolvimento.

Pedro Corrêa – Articulista e consultor de segurança no trânsito

 

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