Mortes no trânsito freiam avanço da expectativa de vida

20/09/2017 às 5:11 pm

Publicado em: O Globo

A expectativa de vida da população mundial continua a aumentar, impulsionada principalmente pela queda generalizada na mortalidade infantil, mas no Brasil este avanço está sendo freado pela violência, tanto a interpessoal quanto no trânsito, tendo como as maiores vítimas homens jovens de baixa renda. É o que indica a última edição da série de estudos “Fardo Global das Doenças” (GBD, na sigla em inglês), publicada ontem no prestigiado periódico científico “Lancet”.

 Fruto de uma colaboração de centenas de pesquisadores espalhados pelo planeta e coordenados pelo Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME, também na sigla em inglês) da Universidade de Washington, nos EUA, a série “Fardo Global das Doenças” é como um “retrato” da saúde mundial, com uma miríade de dados que podem ajudar a orientar políticas públicas tanto nacionais como internacionais na área. Na edição deste ano, a metodologia desenvolvida pelo IHME foi ampliada para estimar os impactos de 328 doenças e lesões incapacitantes, quase 3 mil tipos de sequelas e 84 fatores de risco ambientais e comportamentais à saúde nas populações de 195 países entre 1990 e 2016.

No caso do Brasil, assim como em boa parte do mundo, a principal causa de mortes precoces são as doenças do coração, respondendo por 10,21% da métrica usada, “anos de vida perdidos”. Aqui, no entanto, logo a seguir entram na lista os homicídios e os acidentes de trânsito, apontados como responsáveis por 9,47% e 6,76% destes “anos perdidos”, respectivamente. Na média mundial, a violência no trânsito responde por 3,87% dos “anos perdidos”, enquanto a violência interpessoal fica com 1,27% deles.

— No mundo, de forma geral, a expectativa de vida é basicamente determinada pela mortalidade infantil, mas no Brasil a conta é diferente, com tanto a violência interpessoal quanto no trânsito tendo grande influência neste cálculo — destaca Paulo Lotufo, diretor do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP e um dos colaboradores brasileiros na série de estudos. — A violência interpessoal e no trânsito são problemas brasileiros que antecedem a atuação do sistema de saúde. Uma coisa é a mortalidade materna ou neonatal por falta de assepsia no parto, o que seria um problema de má qualidade do sistema de atendimento em saúde. Mas outra coisa são essas causas externas. O sistema de atendimento em saúde não tem nada a ver com as taxas de homicídios, que são uma questão social. E a violência interpessoal e no trânsito também têm uma característica comum: suas principais vítimas são homens jovens de classes mais pobres.

Assim, segundo o levantamento, uma menina nascida no ano passado no Brasil pode esperar chegar aos 79 anos, contra 72,4 em 1990. Mas, se o bebê for menino, a expectativa de um que nasceu no ano passado é bem mais baixa, 71,56 anos, frente a 64,4 anos em 1990. Na média global, estas expectativas para os nascidos em 2016 foram calculadas em 75,33 e 69,79 anos para mulheres e homens frente a 67,57 e 62,7 em 1990, respectivamente.

Nem todo este tempo de vida a mais ganho nas últimas décadas, no entanto, será bem vivido, de forma saudável. Com o envelhecimento da população, fenômeno observado tanto no Brasil quanto em também boa parte do resto do mundo, e o aumento da incidência de problemas como a obesidade, também é cada vez mais comum o desenvolvimento de condições incapacitantes. Aqui, lideram a lista destas condições que atrapalham o usufruto dos últimos anos de vida as dores nas costas e pescoço, doenças que afetam os sentidos, de pele, enxaquecas e desordens depressivas e de ansiedade.

— No Brasil vemos uma tendência muito similar à de outros países em desenvolvimento, em que houve uma forte redução na incidência de doenças infeciosas e relacionadas à má nutrição — aponta Bruno Nascimento, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e outro colaborador brasileiro da série de estudos deste ano. — E com esta transição epidemiológica também tivemos uma mudança no perfil demográfico da população, em que o envelhecimento da população foi acompanhado em paralelo pelo aumento na incidência de doenças não comunicáveis crônicas, como diabetes, do coração, cânceres e as neurodegenerativas, além de um aumento nos problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão.

Nascimento destaca, porém, que o envelhecimento sozinho não é responsável por toda a incapacitação que afeta os brasileiros em seus últimos anos de vida. Segundo ele, muitos destes problemas têm na sua raiz maus hábitos cultivados durante anos por suas vítimas, como dietas ruins, sedentarismo e tabagismo, conhecidos como fatores modificáveis que, se abandonados, podem melhorar em muito a qualidade de vida em seu crepúsculo.

— Por isso estes fatores modificáveis devem ser foco de políticas públicas para seu combate aqui no Brasil, do mesmo modo que têm sido em vários outros países do mundo — defende.

Opinião parecida tem Itamar de Souza Santos, também professor da Escola de Medicina da USP, integrante do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da instituição e mais um colaborador brasileiro da série de estudos.

— Principalmente desde o início do século XX, uma série de razões influenciou o aumento da expectativa de vida das populações: redução da mortalidade infantil, melhora das condições sanitárias, melhor controle das doenças infecciosas e, também, melhora dos tratamentos médicos disponíveis — diz. — Entretanto, em consequência do envelhecimento populacional, e um avanço menos intenso na prevenção de doenças crônicas e seus fatores de risco, esse aumento da expectativa de vida também se acompanhou de um aumento no número de anos vividos com incapacitação, ou seja, com alguma condição com repercussão na qualidade de vida dos indivíduos.

Diante disso, Santos crê que será prioridade de governos e da ciência nas próximas décadas encontrar maneiras de atacar estes problemas.

— Acredito que no século XXI a busca por melhorar a qualidade de vida das pessoas vai influenciar decisivamente a organização dos sistemas de saúde, bem como a pesquisa e ensino dos profissionais da área — conclui.

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