Mudanças na CNH podem aumentar mortalidade no trânsito

14/06/2019 às 10:42 pm

Publicado em Exame

País já ocupa o terceiro lugar em mortalidade no trânsito entre 88 países, e com mudanças feitas sem base técnica, situação tende a piorar

 “A indústria da multa vai deixar de existir no Brasil“. A promessa foi feita nesta quarta-feira (05) pelo presidente Jair Bolsonaro sobre o projeto de lei que modifica o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e foi entregue ontem pessoalmente a Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados.

Para virar lei, o texto ainda precisa ser aprovado em maioria simples pela Câmara e pelo Senado Federal. Elaborado em parceria com o Ministério da Infraestrutura, ele altera 17 artigos do CTB.

Algumas das mudanças têm pouco efeito prático, como uma nova definição do que é um ciclomotor.  Há outras, contudo, que geram uma série de críticas por ignoraram estudos estatísticos sobre mortalidade no trânsito — considerada até hoje como uma epidemia pelas autoridades brasileiras.

 Dentre elas está a extensão do prazo de validade da CNH de cinco para dez anos e o aumento de 20 para 40 nos pontos necessários para o condutor perder a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) no período de um ano. O presidente disse hoje que se dependesse dele, o número seria 60.

Também está na lista de mudanças o fim da multa de 293,47 reais a quem deixar de usar cadeirinha para crianças de até sete anos e meio, substituídos por uma advertência escrita, e a multa mais branda para motociclista que estiver sem viseira ou óculos de proteção.

Segundo o mais recente relatório da Organização Mundial da Saúde, em 2016 o Brasil teve 19,7 mortes no trânsito a cada 100 mil habitantes. Com isso, ocupa o terceiro lugar entre 88 países considerados com base de dados confiáveis nessa área, atrás somente de Belize e da Índia.

Só em 2017, segundo dados mais recentes do Ministério da Saúde, 37 mil brasileiros morreram no trânsito enquanto outros 380 mil tiveram algum tipo de sequela e precisaram receber indenização, de acordo com o Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, mais conhecido como DPVAT.

“Apesar das estatísticas de trânsito no Brasil, o governo usa uma pauta sem fundamentos técnicos onde o Estado deixa de intervir na segurança da população. Isso impacta não só nas vidas humanas, mas traz todo um prejuízo para a saúde pública e para a economia”, diz Pedro de Paula, professor da FGV Law e coordenador em São Paulo da Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito.

O impacto, de fato, é significativo. Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil, mais de 60% dos leitos hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS) são ocupados por vítimas de trânsito. Nos centros cirúrgicos, 50% da ocupação também é por vítimas de acidentes rodoviários.

Já em uma perspectiva econômica, o Observatório de Segurança Viária estima que os acidentes no trânsito resultam em custos anuais de 52 bilhões de reais para os cofres públicos.

Também há um impacto específico na mortalidade no auge da sua idade produtiva. Levantamento do Conselho Federal de Medicina mostra que, na última década, 1,6 milhão de brasileiros morreram no trânsito. Desses, 60% envolveram vítimas com idade entre 15 e 39 anos.

No caso das cadeirinhas, por exemplo, o presidente afirma que “no Rio de Janeiro, o pessoal faz plantão em cima de escola onde o pai paga R$ 3 mil, R$ 4 mil de mensalidade. Escola pobre não tem multa. Então é um negócio direcionado para tirar dinheiro do povo”.

Contudo, o estudo da OMS mostra que o uso do utensílio pode reduzir em até 60% a chance de morte de crianças em acidentes de trânsito. No Brasil, o número de acidentes fatais com crianças caiu 12,5% desde 2008, quando o item se tornou obrigatório. Segundo o Ministério da Saúde, naquele ano os registros foram de 319, contra 279 em 2017.

Alternativas

Se o objetivo do governo de Jair Bolsonaro é reduzir a chamada “indústria da multa”, há outras medidas que poderiam ser tomadas nesse sentido minimizando o impacto sobre a integridade física dos brasileiros.

Para Ricardo Hegele, diretor científico da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET), seria atrativo se o governo deixasse de aplicar multas em circunstâncias de baixo potencial ofensivo, como estacionar em local proibido, que hoje custa 130,16 reais.

“O CTB considera como gravíssimo quando o motorista anda 50% acima do limite da velocidade. Agora, ele pode fazer isso três vezes e nada vai acontecer”, diz Hegele.

Em termos práticos, é como se na Rodovia dos Bandeirantes, cuja velocidade é de 120 km/h, o motorista trafegasse a 179 km/h, sem nenhum prejuízo além do financeiro.

A discussão sobre a mudança no trânsito brasileiro é o fato de o governo não ter apresentado nenhum estudo técnico que embase a sua decisão, na contramão das evidências de redução nas mortes com maior fiscalização e obrigações, também ignorando as melhores práticas internacionais.

“Política Pública só é efetiva quando feita com base em evidências”, conclui Hegele.

Além das mudanças inseridas pelo projeto, o presidente também já determinou a suspensão da instalação de novos radares de velocidade nas rodovias federais não concedidas à iniciativa privada.

Foto em destaque: Levi Bianco / Contributor/Getty Images

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